O QUE É O ESPIRITISMO
“As objeções nascem, quase sempre, das idéias falsas, feitas, ‘a priori’, sobre aquilo que se não conhece bem”
Allan Kardec
1-A QUESTÃO CONCEITUAL
Para o filósofo idealista alemão Hegel (1770-1831), “O conceito é a totalidade das determinações, reunidas em sua simples unidade.” Embora o conceito seja indispensável na área do saber, conceituar é limitar. É condensar um conjunto ou a totalidade do conhecimento, em suas características essenciais, a uma unidade, ou seja, a uma expressão que possa representar uma determinada realidade, em nosso caso, doutrinária.
No livro: O Que é o Espiritismo, publicado em julho de 1859, Allan Kardec apresenta os motivos que o levaram a publicar essa obra sintética, onde resume informações iniciais sobre o Espiritismo. A obra é relevante não somente para o neófito da Doutrina, mas também para os seus estudiosos. Em seu preâmbulo, o insigne codificador desenvolve a questão conceitual do Espiritismo afirmando que:
“O Espiritismo é, ao mesmo tempo, uma ciência de observação e uma doutrina filosófica. Como ciência prática ele consiste nas relações que se estabelecem entre nós e os espíritos; como filosofia, compreende todas as conseqüências morais que dimanam dessas mesmas relações.”
Allan Kardec é profundamente feliz ao definir o Espiritismo, dentro de uma elasticidade conceitual, isto é, mesmo com o problema do “conceituar é limitar”, Kardec habilmente apresentou-nos um conceito abrangente, sem deixar de ser fiel a própria natureza da Doutrina.. Assevera, detalhando-nos o conceito acima, que o Espiritismo em sua dimensão científica “...trata da natureza, origem e destino dos Espíritos, bem como de suas relações com o mundo corporal”. Já em seu aspecto filosófico: “O Espiritismo é uma doutrina (...) de efeitos religiosos, como qualquer filosofia espiritualista, pelo que forçosamente vai ter às bases fundamentais de todas as religiões: Deus, a alma e a vida futura. Mas, não é uma religião constituída, visto que não tem culto nem rito, nem templos e que, entre seus adeptos, nenhum tomou, nem recebeu o título de sacerdote (...)”.
A questão, talvez, mais palpitante dentro dessa análise é a questão religiosa no Espiritismo. Em seu discurso pronunciado na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, no dia 1º de novembro de 1868, Allan Kardec se expressou da seguinte forma:
“(...) então o Espiritismo é uma religião ? Ora, sim, sem dúvida, senhores. No sentido filosófico, o Espiritismo é uma religião e nós nos ufanamos por isso...”
(Revista Espírita, dezembro de 1868)
Compreendemos por sentido filosófico o sentido reflexivo, lógico e racional que consubstancia a questão da religião espírita dentro de parâmetros não dogmáticos, visando trabalhar a consciência humana, não para acreditar, mas para compreender a realidade espiritual em suas interfaces. Esse sentido é relevante, pois torna o Espiritismo uma religião dinâmica onde se busca o conhecimento ou a verdade, pelas vias racionais, dentro de uma natural e inalienável liberdade de pensamento. Portanto, o Espiritismo é uma religião de essência, não formalizada e sem as exterioridades que, normalmente, caracterizam o panorama religioso. A questão fica ainda mais inteligível, quando analisamos o sentido filosófico de religião como: “o conjunto de deveres do homem para com Deus”.
Convém, ainda, lembrarmos que para Johann Heirnrich Pestalozzi, o verdadeiro sentido de religião estava centrado na moralidade, isto é, no desenvolvimento espiritual do ser humano. Certamente por isso, observa-nos Herculano Pires, o fato de Kardec ter aprendido com o mestre Pestalozzi, que: “a moralidade era essência da Religião e portanto a verdadeira religião”. Isso explica Kardec ter usado, nos textos doutrinários, diversas vezes o termo “moral” ao invés da palavra “religião”. Segundo ainda, o eminente Prof. Herculano Pires: “Kardec recebeu dos Espíritos a confirmação dessa teoria pestalozziana. Todo o ‘Livro dos Espíritos’ a confirma, ensinando uma religião pura, desprovida de exigências materiais...”
Valendo-nos dessa singela análise, fica-nos evidente a lógica ternária do Espiritismo: Ciência-Filosofia-Religião, na dimensão conceitual da unidade doutrinária.
2- O PARADIGMA CRISTÃO
O Cristianismo, dentro da historicidade que lhe caracteriza a jornada, reúne os elementos indispensáveis para nortear o processo de mutabilidade humana, no aperfeiçoamento de suas capacidades morais, rumo à plenitude. Nos referimos aqui ao Cristianismo desenvolvido por Jesus. Portanto, o Cristianismo inicial, consubstanciado na moral cristã e não no cristianismo deturpado ao sabor dos interesses do poder temporal que permeou o mundo europeu Ocidental após sua liberação em 313, pelo Imperador Romano Constantino, e mais efetivamente, com a realização do Concílio de Nicéia no ano 325 d.C., onde foram introduzidos dogmas como: a virgindade de Maria e a existência da Santíssima Trindade, onde Jesus foi conduzido a condição de Deus. Mais tarde, em 529, no Concílio de Orange, adota-se a teologia agostiniana e, por ocasião do Quinto Concílio Geral da Igreja, em 553, a idéia das vidas sucessivas, que fazia parte do Cristianismo inicial, é definitivamente rejeitada e, em seu lugar, apresenta-se a teologia de Agostinho sobre o pecado original.
Com esses fatos, o Cristianismo perde gradativamente sua pureza inicial para organizar-se de modo semelhante a estrutura político-religiosa do império romano, mergulhando logo em seguida, no mundo medievo.
É fato notório de todo estudioso da Doutrina Espírita, que esta tem profundas relações com o Cristianismo Inicial, porquanto, possui afinidades, no dizer de Deolindo Amorim: “muito acentuadas no campo moral, uma vez que a moral espírita não é outra, senão a do Evangelho”. Na verdade, coube ao Espiritismo, na atualidade, restaurar a simplicidade do Cristianismo inicial. Logo, a Doutrina Espírita possui o papel histórico de apresentar Jesus Cristo, como o modelo ideal de perfeição a ser atingido, sem , no entanto, apresentá-lo dentro das ortodoxias que caracterizaram o pensamento religioso das igrejas dogmáticas que advogam para si o título exclusivista de “cristãs”.
Em comentário a questão 625 de O Livro dos Espíritos, assim se expressa Kardec:
“Para o homem, Jesus constitui o tipo da perfeição moral a que a Humanidade pode aspirar na Terra. Deus no-lo oferece como o mais perfeito modelo e a doutrina que ensinou é a expressão mais pura da lei do Senhor ...”
Não obstante, a partir dessa questão de O Livro dos Espíritos, Allan Kardec percebe a importância de explicar à luz do Espiritismo, os ensinos morais de Jesus a fim de torná-los inteligíveis para todas as pessoas. Conclui-se, como é obvio, que o Espiritismo aceita a Moral de Jesus como uma proposta de alta transcendência para instrumentalizar o progresso ético-estético-espiritual da criatura humana encarnada e desencarnada.
Surge, então, em abril de 1864:“O Evangelho Segundo o Espiritismo”, contendo “a explicação das máximas morais do Cristo” - sintetizadas no amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo - “em concordância com o Espiritismo e suas aplicações às diversas circunstâncias da vida”.
Ora, o Espiritismo, portanto, não apenas reconhece o valor da mensagem Cristã, mas pauta-se por ela. Ensina-a, porque encontra nela a mais notável proposta educativa para a felicidade do espírito humano.
3- A PRÁXIS ESPÍRITA
Seguindo o exemplo de Kardec ao alertar-nos sobre a importância do uso e do sentido das palavras, desejamos, por nossa vez, esclarecer o significado do termo acima. Consideramos por: “a práxis espírita” a união dialética da teoria espírita e sua prática.
Recentemente o Espírito Bezerra de Menezes pela psicofonia de Divaldo P. Franco, fez oportuna exortação aos trabalhadores espíritas: “Consideremos urgência do tempo, a gravidade da hora e integremo-nos totalmente no ideal da fé renovadora”. Certamente tal advertência nos conclama a profundas reflexões sobre os efeitos comportamentais oriundos da assimilação do conhecimento espírita. Esse processo, no entanto, consubstancia-se na fé racional, fruto de conhecimentos mais amplos sobre a vida e os mecanismo pelos quais ela se processa.
Face a isso, a práxis espírita deve ser a vivência do Espiritismo, no Centro Espírita, sem atavismos, a fim de que ele venha contribuir, em toda a sua simplicidade, para o avanço do progresso ético-moral do ser humano, encarnado e desencarnado.
Todo estudioso da Doutrina sabe que o Espiritismo é a doutrina da simplicidade e, portanto, é anti-ritualística, mas há espíritas que se deixam sugestionar pelas práticas ancestrais remanescentes de outras experiências religiosas, desejosos de aplicá-las na Sociedade Espírita. Tais procedimentos, demonstram a necessidade sistemática de não apenas participarmos de seminários e jornadas no Movimento Espírita com regularidade, mas fundamentalmente, metabolizarmos os conhecimentos hauridos nesses eventos, e nos Grupos de Estudo Sistematizado da Doutrina, a fim de racionalizarmos a prática espírita e darmos autenticidade à propagação do Espiritismo, nos moldes em que nô-lo apresentou Allan Kardec.
O Espiritismo é uma doutrina dialética. Entenda-se por dialética a dinâmica racional pela qual se estrutura o pensamento espírita em sua base fundamental: a Codificação Kardequiana. Logo, a sua aplicação prática está, não em produzir exclusivamente fenômenos mediúnicos, mas em realizar estudos sistemáticos da teoria espírita, em sua dimensão tríplice de ciência, filosofia e religião, para nos habilitarmos ao ideal de renovação interior pela fé racional. Vejamos o que diz Kardec sobre os grupos de estudo:
“Há algum tempo constituíram-se alguns grupos, de especial caráter, e cuja multiplicação entusiasticamente desejamos encorajar. São os denominados grupos de ensino. Neles ocupam-se pouco ou nada das manifestações. Toda a atenção se volta para a leitura e explicação de ‘O Livro dos Espíritos’, ‘O Livro dos Médiuns’, e de artigos da ‘Revista Espírita’. (...) Aplaudimos de todo o coração essa iniciativa que, esperamos, terá imitadores e não poderá, em se desenvolvendo, deixar de produzir o melhores resultados.”
(Allan Kardec - Viagem Espírita de 1862)
Já em 1862, Kardec estava esperançoso quanto a importância dos grupos de estudo da Doutrina. E os “resultados”, a que ele se refere, são as conseqüências práticas dos objetivos do Espiritismo. Voltamos novamente a essa relação dialética da unidade teoria/prática. Quando falamos em “objetivos do Espiritismo” queremos, entre outras coisas, nos referir a sua proposta mais essencial, através da qual, deriva o comportamento espírita: a Fé Raciocinada. Esta sim, é o fio condutor do processo da práxis espírita, tanto no Movimento Espírita como na vida pessoal do espírita. A aplicabilidade dos ensinos espíritas em nossa vida cotidiana, exige, como é natural, esforço perseverante na arte de educar as nossas potencialidades internas. É notório que o verdadeiro espírita é aquele que se esforça para “domar” suas disposições intimas, ainda, distanciadas do bem.
É o princípio geral da Lei do Trabalho, isto é, sem esforço não há progresso.
4-RELEITURA DA VIDA
O homem hodierno exaurido pelos conflitos múltiplos que habitam seu mundo íntimo, busca novos paradigmas que lhe possam dar suporte para suas experiências cotidianas na Terra. Não obstante, as religiões fragilizadas em suas práticas ancestrais, perderam-se nos formalismos, esquecendo que a essência de renovação do homem é processo íntimo e racional. A criatura humana promoveu guerras na sua insânia de encontrar a paz. O homem, segundo Thomas Hobbes, fez-se “lobo do próprio homem” e com isso gerou mais conflitos para si mesmo. A criatura humana rebelde, opta, historicamente, por desenvolver mais a intelectualidade, esquecendo-se do sentimento do amor, da fraternidade.
Nesse momento grave que transita a humanidade em escala planetária, o Espiritismo é a doutrina nova que propõe uma releitura da vida e dos valores existentes. É um novo olhar para o real, com base nas informações sobre Deus, a imortalidade da alma, a reencarnação, a justiça divina, a pluralidade dos mundos habitados, a lei de ação e reação ..., obtidas por Allan Kardec, através da comunicabilidade com espíritos superiores, e examinadas sob o crivo da razão.
Segundo Fritjof Capra, em seu livro “O Ponto de Mutação”, a humanidade, no momento atual, vivencia um processo de transformação cultural, ou seja, uma mudança de paradigmas, não obstante, a predominância de uma cultura materialista que está visivelmente declinante por recusar-se a mudar, aferrando-se cada vez mais, obstinada e rigidamente, a suas idéias obsoletas; mas o seu declínio continuará inevitável, ao mesmo tempo em que a cultura nascente consubstanciada em uma visão espiritualista continuará ascendendo e assumirá finalmente o seu papel de liderança. No entanto, lembremos que mudanças evolutivas e educacionais dessa magnitude, não ocorrem a curto prazo e de forma simplista.
O Espiritismo é, sem dúvida, a síntese dessa cultura emergente, pois sintetiza em sua ampla e dinâmica conceituação, todas as conquistas reais da tradição religiosa, filosófica e científica, acrescentando novos conhecimentos sobre a natureza humana e seu processo evolutivo, ensejando-nos horizontes mais amplos de esclarecimento e consolação e, com isso motivando-nos à prática do BEM, como proposta da vida, para nos levar ao encontro da felicidade real.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. 68ª ed. Feb.
_________O Evangelho Segundo o Espiritismo. 100ª ed. Feb.
_________Obras Póstumas. 22ª ed. Feb.
_________Revista Espírita. Dez/1868. Edicel.
_________Viagem Espírita. 1862.
_________O Que é o Espiritismo. 32ª ed. Feb.
PIRES, J. Herculano. O Espírito e o Tempo. 2ª ed. 1977. Edicel.
AMORIM, Deolindo. O Espiritismo e as Doutrinas Espiritualistas. 4ª ed. Celd.
JERRI ALMEIDA
Professor, escritor e Dirigente Espírita